O que esperar do novo mercado de gás?

Nos últimos meses, houve bastante movimentação e diferentes anúncios de projetos de mudanças no mercado de gás, em rumo a um mercado mais competitivo e eficiente. Há várias dificuldades enfrentadas pelos atores e consumidores do setor, em muito causadas pela falta de concorrência que estimula maior eficiência na prestação dos serviços.

O lançamento do Novo Mercado do Gás, anunciado oficialmente em junho pelo Governo Federal, é um marco na tentativa de implementar medidas efetivas para ampliar a competitividade do setor. A perspectiva é a de que, com abertura à maior concorrência, o mercado se torne mais eficiente e, assim, apresente preços acessíveis e competitivos – além, é claro, de atrair investimentos tão necessários e relevantes para o país.

As dificuldades atuais: alto preço e concentração
A falta de competição do mercado de gás e sua alta concentração na Petrobras vem gerando consequências para o custo do gás pago pelo consumidor final. O gás é um insumo caro no Brasil, quando comparado com outros países. Em estudo recente, o Conselho Nacional de Política Energética detectou que o gás brasileiro é o terceiro mais caro para o consumidor industrial em comparação com países selecionados[1].

Esse cenário é, em grande parte, decorrente da falta de competitividade existente no setor. A Petrobras (inclusive por meio de suas subsidiárias e empresas em que tem participação) detém monopólio de fato de diferentes etapas da cadeia, inclusive refino, transporte, comercialização e distribuição (detendo, neste último caso, participação em várias das principais concessionárias estaduais). A indústria é, pois, altamente concentrada na atuação da Petrobras.

A Petrobras exerce um monopsônio em relação aos produtores de gás natural, sendo a única compradora do que é produzido internamente[2]. Ao mesmo tempo, por conta da falta de obrigatoriedade de acesso às infraestruturas essenciais, a empresa é monopolista em relação ao mercado atacadista. Como única vendedora de gás natural para as distribuidoras e consumidores finais, o preço é estabelecido livremente e sem concorrência[3].

Outro fator que agrava as pressões econômicas para a alta do preço é a redução da oferta pelo alto nível de reinjeção do gás, que representa ao menos um terço da produção[4].

O alto preço é um entrave à competitividade das empresas, especialmente às que mais dependem do gás no consumo industrial. Além do uso do gás para geração de calor e eletricidade, ele pode ser usado como redutor siderúrgico na fabricação de aço, para a produção de fertilizante nitrogenados ou em processos industriais que exigem a queima em contato direto com o produto final (cerâmica, vidro e cimento).

Com isso, há grande impacto em cadeia para os consumidores finais que, ao mesmo tempo, consomem produtos derivados do gás natural (GNV) e sofrem o impacto no final da cadeia dos produtos industriais que o utilizam como insumo.

O preço elevado pago pelos consumidores, industriais ou não, evidencia a falha de mercado no setor de gás natural causado, sobretudo, pelo poder de mercado exercido pela Petrobras. Ineficiência, falta de clareza quanto aos custos e à formação de preços, dificuldades entre a Petrobras como comercializadora, as distribuidoras estaduais, os consumidores finais e as agências reguladoras estaduais são alguns dos problemas conhecidos, e que em muito decorrem da alta concentração do mercado.

Conjuntura favorável às mudanças
As dificuldades que o cenário de alto concentração do mercado de gás ensejam são (re)conhecidas há tempos.
A Lei do Gás (Lei nº 11.909), promulgada em 2009, foi uma tentativa de buscar alterar o cenário de concentração vertical no mercado, sem sucesso significativo. Contudo, ao mesmo tempo em que assegurou o acesso de terceiros aos gasodutos de transporte (art. 32), nos gasodutos de escoamento permaneceu a não obrigatoriedade de permitir o acesso de terceiros (art. 45), reforçando a estrutura de mercado disfuncional.

Temos, então, condições objetivas que revelam a necessidade de mudanças, representadas pelos preços elevados, subutilização da infraestrutura já existente e desaceleração do crescimento industrial.
Em paralelo, a conjuntura política é favorável. Há clara disposição – ao menos no que tem sido anunciado pelo governo e também pela Petrobras – em alterar o cenário do mercado de gás e trazer competição.

A vontade (de fato, até mesmo a necessidade) da Petrobras em reduzir sua participação nas diferentes etapas do mercado de gás (no âmbito de seu plano de desinvestimentos e reestruturação econômica), intensificada pela pressão do CADE em aumentar a competitividade do setor, podem ser fatores determinantes para que as mudanças no mercado de gás sejam bem-sucedidas.

Neste cenário, foi recentemente anunciado o Novo Mercado do Gás, uma iniciativa conjunta que será implementada pelo Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural. O Comitê foi criado pelo Decreto nº 9.934/2019, e será composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da Economia, do Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (CADE), da Agência Nacional do Petróleo (ANP), e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

O que propõe o Novo Mercado do Gás
O Novo Mercado do Gás é um programa coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, desenvolvido em conjunto com Ministério da Economia, ANP, EPE e CADE, para a formação de um setor aberto, dinâmico e competitivo.

O principal instrumento pauta-se nos desinvestimentos da Petrobras, em todas as etapas da cadeia, de modo a aumentar a competição: venda de refinarias; incentivo ao transporte independente, com a definição da quantidade de uso, pela Petrobras, para oferta de capacidade excedente; venda da participação da Petrobras nas distribuidoras estaduais e comercializadoras. Esse programa de desinvestimentos será balizado pela atuação do CADE, a partir de termo de compromisso firmado entre esse órgão e a companhia estatal.

Em paralelo às medidas a serem adotadas pela Petrobras, o programa também prevê: (i) a elaboração de regulações pelo CNPE e ANP, que tragam os objetivos e os instrumentos para o alcance de maior competição no mercado de gás; (ii) a adoção de incentivos para estimular a criação de programas estaduais visando à maior competição e eficiência das distribuidoras estaduais; (iii) medidas tributárias para desonerar o setor, incluindo ajuste SINIEF.

Estes instrumentos têm como objetivo viabilizar a construção dos quatro pilares do Novo Mercado do Gás: (i) promoção da concorrência; (ii) integração do setor de gás com setores elétrico e industrial; (iii) harmonização das regulações estaduais e federal; e (iv) remoção de barreiras tributárias.

O que terá que acontecer para concretizar o Novo Mercado do Gás?
Para consolidar o Novo Mercado do Gás, diversas medidas ainda serão necessárias. No âmbito da regulação federal, caberá à ANP aprimorar a regulação com enfoque no escoamento e na otimização da oferta de capacidade de transporte dos gasodutos. No âmbito do escoamento, a atuação da Agência estará limitada pelo art. 45 da Lei do Gás, que torna não obrigatório o acesso de terceiros aos gasodutos de escoamento. Nos gasodutos de transporte, a Agência promoveria a consolidação do processo de implantação do regime de reserva de capacidade no Brasil (por entradas e saídas).

No âmbito dos Estados, prevê-se incentivos federais que poderão ensejar mudanças nas práticas regulatórias estaduais, tanto para incentivar maior concorrência, como para adotar estruturas tarifárias que incentivem prestação eficiente (por exemplo, sem o “repasse automático” de determinados custos para os consumidores). Como o serviço de distribuição é competência local, caberá aos Estados e aos seus reguladores decidir pela adequação ou não às práticas regulatórias sugeridas pela ANP.

Como participar e acompanhar as mudanças?
As mudanças possibilitam oportunidades para novos entrantes no mercado ou para agentes que pretendam ampliar sua participação, realizando investimentos. Os agentes que pretendam ingressar ou ampliar sua participação no mercado têm como oportunidade imediata a aquisição das participações acionárias que serão alienadas pela Petrobras. No entanto, o Novo Mercado pretende integrar a cadeia aos setores industriais e elétricos, o que pode se revelar como uma boa oportunidade para empresas destes segmentos investirem em logística que lhes beneficiem.

Além disso, mesmo no período de transição, a Resolução CNPE prevê que a Petrobras oferte suas capacidades remanescentes do seu sistema de transporte, de modo que o investimento em produção também permitiria uma comercialização imediata.

No âmbito estadual, o objetivo de maior competição traz oportunidades para o setor privado, especialmente com a redução ou mesmo saída de participações estaduais das distribuidoras locais.

Para as prestadoras de serviço de distribuição de gás canalizado, poderá ser necessário adaptação aos novos marcos regulatórios. No entanto, deve ser levado em consideração que há regulamentação relevante a ser editada, de modo que todos os atores interessados – sejam investidores nas etapas da cadeia produtiva ou consumidores – deverão acompanhar e participar da construção desse novo marco regulatório, em âmbito federal e estadual.

Será essencial, assim, que os atores e potenciais interessados estejam atentos e participem ativamente da construção desses novos marcos regulatórios visando à construção de um competitivo mercado de gás no país.

Dessa forma, tanto os investidores interessados nas oportunidades de negócios e os agentes atuantes hoje no mercado deverão avaliar e mitigar riscos, além de compreender e adequar-se à nova regulamentação.

[1] Dados do CNPE, conforme apresentação disponível em: http://www.mme.gov.br/documents/1138769/0/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_NMG_CNPE_Final.pdf/252bbc81-66f8-4dd8-808b-183825786610. Acesso em 25/07/2019.

[2] O poder de mercado da Petrobras, ao longo das etapas da cadeia do gás, é tão expressivo que, para os demais produtores, a maior vantagem econômica é vender suas parcelas de produção. Para um histórico sobre a formação de preços na indústria do gás, ver a Nota Técnica nº 12/2004 e Nota Técnica nº 02/2011, ambas disponíveis no site da Agência: http://www.anp.gov.br/notas-tecnicas. Acesso em 25/07/2019.

[3] As informações constam da versão pública da Nota Técnica nº 14/2018-SIM.

[4] Conforme dados do CNPE: http://www.mme.gov.br/documents/1138769/0/Apresenta%C3%A7%C3%A3o_NMG_CNPE_Final.pdf/252bbc81-66f8-4dd8-808b-183825786610. Acesso em 25/07/2019.

Marina Fontão Zago e Douglas da Silva Oliveira são advogados do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques

 

Fonte: EPBR

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